domingo, 30 de novembro de 2008

fragmentos do romance





Carros ressoam no crepúsculo ao longo da Avenida Atlântica atrás de mim. Piso na areia, vindo da calçada que acompanha a orla de Copacabana. O oceano transmite a velha paz que jamais consigo manter. Deus, eis-me aqui de novo tentando. Pode ser o começo de uma história, de minha história. Até aqui nada tenho feito além de sonhar e abortar sonhos. Mas descalço na areia sinto que minha existência é real e mais que isso, necessária. Sempre fui aquele que poderia ter sido. Tudo o que fiz foram as coisas que deixei de fazer. Um sonhador, prefiro considerar; um perdedor, será irreversível admitir?

(...)

Conheci Esperança em uma quinta feira, numa época em que me determinara a nunca mais chorar ou me sentir miserável, exceto pela visão de crianças miseráveis chorando.
Quem pode entender o coração humano? Através de todo o meu tempo de homem eu havia procurado alguém como Esperança para partilhar as bênçãos da vida, alguém assim como Esperança, que fizesse cada momento ser eterno; e agora tudo o que me bastava era ir para a cama com ela e poder recordar isso e talvez repeti-lo algumas vezes.
Esperança era alta e magra, acalentava sonhos sem se perder neles, tinha um sorriso triste que me comovia e deixava indefeso, acatava os chamados secretos da vida como foram meu convite e insistência, seus olhos brilhavam além do momento em que eu os admirava, venerava a Virgem com devoção supersticiosa e de resto seus cabelos negros emolduravam seu rosto evocando a própria Senhora.

(...)

Atenção é a chave de tudo, desde aquela estrela cadente que vimos até o quebrar dessas ondas; do tremeluzir da cidade no mar até o som de nossa própria voz; e o cheiro, o sal desprendendo-se da praia, o cachorro quente da carrocinha... Atenção, e nossos pés vivificam o toque da areia. E o beijo...

Eu não sou como o resto – disse Esperança; mas o disse sem pretensão, com tanta sinceridade, que minha alma se pôs a seus pés.
Definitivamente, minha história estava começando.

(...)
Estamos na clara manhã de sexta-feira, entrando na penumbra do prédio famigerado pela vida dupla da maioria de seus moradores, e Esperança está à vontade, cumprimenta o porteiro com intimidade, a voz grave despedaçando as sílabas com seu sotaque de anjo.
O sorriso de Esperança, impregnado de reticências e mistérios, na verdade, percebia agora não era exatamente triste apenas não possuía a alegria que normalmente o gesto de sorrir faz supor – era neutro, além da tristeza e da alegria e talvez por isso tão próximo de alguma coisa que mesmo não identificada com precisão eu considerava muito rara, algo como um instante perfeito, lídimo. Tinha a ver com o que eu pressentira na praia no dia em que a conheci: um aceno da vida ao qual seria herético não corresponder.

(...)

Esperança jogou a última peça sobre as outras roupas no sofá – por que eu deveria conceituar seu comportamento? – ela me fazia ser – e, de algum modo em minhas fraquezas, eu podia sentir que comigo naquele momento ela não estava reproduzindo momentos, mas sendo também plenamente como talvez nunca houvesse sido.

(...)

Que foi feito da noite?

Está aqui, em sua síntese, plenificada no dia, resumida, inteira no dia; na luminosidade dos olhos de Esperança como espelho do rio que me reflete e pulsa em seu peito; no amor que é eterno por que é, agora; na suavidade e no silêncio, exceto pelo incenso vindo do coração longínquo da cidade lá embaixo; no âmago da bondade, na autenticidade; na respiração em meu rosto; no suplicante seio, no umbigo licoroso; no pacto silente, no êxtase tranqüilo, na reticência do sorriso de Esperança e na poesia em seus dedos – a noite está aqui, o universo em nós – nossas mãos falando nos lençóis, onde minhas angústias?, amplidão de virtudes me enleva – assim, assim – prendo o ar, fecho os olhos.

(...)

Coloquei a máquina de volta na cômoda. O fogo é o único elemento da natureza que não existe, que só existe sob certas circunstâncias e não há exceto o inferno um lugar constantemente em chamas. Sara abrira as cartas e recolocava as roupas. Eu não estava prevenido – fui testado e falhei. Mas um dia tudo isso acaba. Não sei quando. um dia.